— Isso aqui qualquer um consegue fazer!
Disse a chef, enquanto provava a terceira garfada do prato finalizado. Ela, esperançosa por uma novidade, passou semanas estudando, procurando referências e buscando uma ideia que fosse impecável, única, saborosa e que mudasse o curso de toda sua carreira.
Mas, naquele momento, tudo o que ela conseguiu entregar foi uma polenta. Bem cozida, bem empratada, com uma carne que desmanchava na boca, cozida por horas, mas era no final das contas apenas uma polenta.
— Mas está ótimo, qual é o problema? – Disse seu sous-chef que também havia provado o prato, confuso com a problematização.
— O problema é que é simples demais, não marca presença.
— Para mim parece redondinho.
Não era isso que a chef queria. Ela não queria “redondinho” ou bom o suficiente. Ela queria elevar o nível do restaurante, da sua trajetória, de todos ao redor, ela estava obcecada e todo mundo começou a reparar. Os comentários começaram levemente a tomar a cozinha e ninguém conseguia entender por que tanto caso por causa de uma tarefa tão simples.
O sous-chef, intrigado com o tamanho dos olhos dela enquanto ela mastigava a comida com raiva, achou por bem levá-la até um canto da cozinha, onde os outros não escutariam a conversa.
— Mari, qual é o problema?
— Como assim? o problema é a comida, claro
— Não é possível, tem alguma coisa ai
— Eu só quero entregar algo bárbaro, João, o que tem demais?
— O que tem demais é que você já está com algo bárbaro nas mãos, todo mundo ficou encantado e satisfeito com o produto final.
— Mas eu não fiquei! É um conjunto muito simples, muito básico.
— Eu discordo. Acho que esse prato traz sentimentos, acolhimento… me lembrou a minha avó que sempre fazia polenta aos domingos quando eu ia visitar. Você está chamando a minha avó de básica?
Mari, a chef, parou para refletir por um momento. Não podia ofender a avó de ninguém, mas também não poderia mentir. Era sim um prato bem básico e bem de casa alheia. Nada tinha a ver com a ideia que ela havia idealizado na mente dela.
— Claro que não é isso, a sua avó deveria ser maravilhosa. É que neste restaurante, nesta cozinha, eu quero deixar minha marca.
— Mas por que a marca não pode ser um prato perfeito como esse? Por que você fica criando caso com isso?
— Porque eu não quero ser mais uma jantinha de quinta, João.
João olhou para ela consternado.
– O que?
Mari encarou então o cerne do problema. Esse era o medo, ela não queria ser requentada novamente, não queria se tornar uma opção qualquer para ser comida apenas quando não havia algo diferente dentro da geladeira. Ela não queria ser uma janta de quinta-feira, que é apenas as sobras da semana que já estão no final e que não têm mais nenhum valor ou emoção. Não queria ser alguém que só é lembrada quando não tem mais nada à disposição.
Mas isso nem era sobre comida.
— Sabe, João, eu queria criar algo que as pessoas viessem aqui só para comer isso, algo que viralizasse, algo que caísse na boca do povo e que fizesse fila na porta. Isso que temos aqui hoje é bom, mas é só isso, não é?
— Você está buscando validação, Mariana, não qualidade.
— Por que não podem ser os dois?
— Porque se fosse, você não estaria se colocando tão para baixo assim. O que você fez já é muito bom, ou melhor, é ótimo! Por que você não entrega isso agora e constrói algo no futuro? Não tem como saber o que melhorar se você não entregar nada, não acha?
Mari não respondeu. Ele tinha razão, era uma tempestade em copo d’água. Mas era a sua tempestade. Talvez ser requentada fosse uma maneira de criar caráter. Talvez os nãos e os pratos básicos fossem, no fim, os ingredientes secretos de tudo.
Enquanto João arrumava a bancada, Mari olhou para a polenta, agora fria. Era apenas uma polenta. Mas era a sua polenta. E talvez, naquele instante, começar por algo que já estava pronto fosse a única coragem que importava.
